sexta-feira, 22 de abril de 2016

Pronto, adeus, está tudo dito.


'It is not that there is no difference between men and women; it is how much difference that difference makes, and how we choose to frame it.'

Siri Hustvedt, The Summer Without Men


'Não é que não haja diferenças entre homens e mulheres; é antes quanta diferença essas diferenças fazem, e como é que escolhemos enquadrá-las.'

quarta-feira, 20 de abril de 2016

A sub-confiança de umas é a sobre-confiança de outros

Há uma dinâmica entre homens e mulheres que só comecei a prestar atenção há pouco tempo mas que agora que me apercebi dela, vejo como ela é tão omnipresente: o mansplaining. E que irritante que ela é.

Há uma data de estudos organizacionais e em contexto de dinâmicas interpessoais que concluem que num grupo misto, não importa a proporção dos sexos, os homens tomam a palavra muito mais vezes e falam muito mais tempo do que as mulheres. O que não deixa de ser interessante tendo em conta que o estereótipo é o da mulher tagarela que não se cala e o do homem que não se sabe expressar por palavras. Mas a realidade é a inversa e desafio-vos a prestarem atenção a isso da próxima vez que estiverem num grupo misto, particularmente em contexto de trabalho.

O The Guardian há uns tempos publicou um artigo bastante interessante sobre as mulheres do Bloco de Esquerda e de como o partido tomou medidas conscientes para dar espaço à "ascensão" das mulheres nas suas fileiras ao dar-lhes o mesmo tempo de antena que aos homens, ao impedir conscientemente que os homens - especialmente os mais velhos - repetissem o que as mulheres diziam mas por outras palavras (outra técnica muito querida do mansplaining; há mais alguns estudos que concluíram que o que é dito por uma voz masculina é acatado com mais peso e mais poder do que a mesma coisa dita por uma voz feminina, não sei se por associarmos o homem ao poder se pelo facto mais primitivo de a voz masculina ser por norma mais grave e sonora):

'The women started to take action to combat the macho traits of a party that had deep roots in Portuguese society. “At the end of our meetings, we count how many times men and women took the stage to speak. Men always speak more than women – but usually they have nothing new to say. Women are more cautious about speaking in public, but when they do they’re adding new ideas or information,” says Joana Mortágua. Martins says the party now trains women in public speaking.
“I encourage younger and shyer women to speak. And sometimes I scold the older male party figures, asking them to resist the temptation to explain what a woman said once she’d finished speaking,” she says.'

Acho que na origem disto tudo está a mesma overconfidence dos homens e a underconfidence das mulheres que os leva a concorrer a empregos desde que tenham um dos requisitos pedidos, e que as impede de concorrer se houver um requisito que não preencham. A mulher é para ser vista, não ouvida, de preferência com um sorriso nos lábios e um aceno pronto de cabeça. Mulheres com opiniões são mandonas, zangadas com a vida, cabras, chatas, histéricas. Homens com opiniões são assertivos.

Desde que comecei a frequentar cafés como ambiente de trabalho durante várias horas seguidas - esses fantásticos sítios para observar pessoas - que fui reparando, devagarinho mas repetidamente, como isto é tão observável na vida real. Sei que estas impressões escassas valem o que valem empiricamente, mas juntando-as às conclusões dos estudos referidos acima (que uma googlada rápida vos pode num instante abrir o caminho) fazem-me notar um padrão: sempre que há um homem e uma mulher numa mesa do lado, é quase garantido que ele não só vai falar muito mais do que ela, como é muito provável que o vá fazer para lhe explicar coisas, frequentemente de uma forma levemente condescendente. Acho que isto é mais pronunciado em casais mais velhos. E isto não se prende com o facto de ele saber necessariamente mais do que ela sobre a coisa que está a explicar, ou até de saber muito sobre o assunto, mas a confiança com que se fala de assuntos e argumentamos acerrimamente está muito raramente relacionada com o quanto percebemos deles, infelizmente. Isso não os demove e lá continuam eles a explicar, a explicar, a explicar, interrompidos por alguns monossílabos da parceira de diálogo, enquanto eu, na mesa ao lado, começo a maldizer internamente as pessoas que amam ouvir a sua própria voz, e que não enxergam o quão aborrecidas estão a ser, ao mesmo tempo que secretamente invejo a confiança que é preciso ter para exteriorizar opiniões banais e para as quais confluiu pouca reflexão como se fossem descobertas muito importantes para a humanidade. Tomara a mim ter metade daquela confiança para falar de coisas sobre as quais me debruço todos os dias. (Tenho a maldição feminina da underconfidence, porra.)

Isto nas redes sociais então é mais que evidente, tanto que foi no contexto virtual que surgiu o conceito do 'mansplaining', abençoada língua inglesa, flexível, adaptável e viva quanto a nossa é relíquia formalesca poética. Fica aqui uma sátira sobre o fenómeno:


'Our uninformed girls are waiting for you to explain them simple concepts in a super condescending way.'





S.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O inimigo dentro de portas

Deparei-me com isto a propósito de outra coisa, e a minha reação foi concluir que a ignorância realmente às vezes é uma benção.

Todos os anos a Comissão Europeia produz um relatório sobre o progresso (ou regressão) em questões de igualdade de género, na Europa em geral e em cada país em particular. É uma coisa um pouco mais legalista e curto-prazo que os índices do EIGE, mas igualmente informativo. Tem até alguns exemplos de medidas que foram tomadas em países particulares e que podem constituir boas práticas. Por exemplo, neste último ano, é referido que a licença de paternidade aumentou de 10 para 15 dias úteis em Portugal, e que na Áustria criaram um novo crime - "violação da auto-determinação sexual" - que inclui atos sexuais praticados contra a vontade de uma pessoa, mesmo que não tenha sido usada violência, mas sempre que as reações da vítima demonstrem falta de consentimento, ou cujo consentimento foi obtido através de intimidação ou chantagem. Aquilo está dividido por cinco áreas, que correspondem mais ou menos às áreas da igualdade de género que a UE dá prioridade (portanto muito à volta do Mercado Único e do emprego):

- independência económica;
- igualdade salarial;
- igualdade em posições de decisão;
- violência de género;
- igualdade de género em países terceiros.

Foi um gráfico - aliás primeiro uma afirmação, depois o gráfico - na parte da violência de género que me prendeu a atenção: mais de metade dos assassinatos de mulheres ocorrem às mãos de parceiros ou família. 

Vou deixar assentar.

Mais de metade das mulheres que são assassinadas são-no às mãos de pessoas muito próximas.

MAS QUE RAIO.


Portanto, a mancha vermelha e azul são os homicídios perpetrados por parceiros íntimos e e familiares, tanto no gráfico das vítimas femininas como na das masculinas. O que salta à vista muito de repente é que sem dúvida que há muito mais homens vítimas de homicídios do que mulheres, pelo menos nos países europeus representados. Suspeito que isto seja uma tendência global, já que os homens estão com mais frequência envolvidos em atividades violentas, crime, gangs, etc, do que as mulheres e também sobre isto haverá muito a dizer (masculinidades tóxicas e por aí fora). O patriarcado não tem consequências nefastas só para as mulheres, e neste caso isso é bem visível. Se bem que, lá está, não é o caso de dominância do outro género - os homens são mortos na vasta maioria por outros homens, basta olhar a percentagem de presos, condenados, etc. É antes uma consequência nefasta das expectativas que lhes são impostas como género dominante, uma masculinidade gone wrong, se quisermos, ao invés de caso de opressão.

Mas regressando ao gráfico. Portanto, há muito mais vítimas de homicídio que são homens do que mulheres, mas reparem na diferença de proporções do perpetrador. Os homens são, na vasta maioria, mortos por "outros", ou seja, nem familiares nem parceiros íntimos, presumivelmente desconhecidos ou, não sei até que ponto os homicídios em contexto de gangs pesam nas estatísticas europeias, mas talvez também por "colegas" ou inimigos de gang (não necessariamente próximos mas também não inteiramente desconhecidos).

Isto não se verifica de todo no caso das mulheres que são mortas por outrém. Vejam-me a manchazorra vermelha dos "parceiros íntimos", que na Inglaterra e País de Gales atinge quase metade do total de homicídios. Isto para não falar da também bastante elevada barra azul, que representa o número de homicídios perpetrados por familiares da vítima. What the fuck! Isto vai contra o senso comum, a perspetiva geral que as pessoas têm do perigo e do risco, para não falar de quão errado moralmente é isto: as pessoas que nos são mais próximas deviam ser as que nos são mais seguras, as que nos querem bem. Andam-nos toda a vida a incutir o medo/cuidado para com os estranhos, não andes na rua sozinha, não saias à noite por aquela zona que é perigoso, e depois em termos de risco a nossa casa é um dos lugares mais perigosos onde se estar? What. the. fuck.

Eu já tinha visto estimativas que indicavam que a vasta maioria das violações ocorrem entre pessoas que se conhecem - o que, mais uma vez, custa a acreditar à primeira vista porque quando se fala em violadores o que salta à imaginação é um homem assustador, creepy, rua, becos escuros, um monstro, portanto. No caso das crianças, exatamente igual. Raptos, violência, abuso sexual, é quase sinónimo do homem na carrinha branca, o desconhecido que ludibria com doces, etc, quando na realidade a vasta maioria da violência e abuso sexual contra crianças acontece em casa ou em sítios familiares, através de pessoas bem conhecidas da vítima. Parece que, tal como para as mulheres, a casa é dos sítios mais perigosos para as crianças. E isto é aterrador.

De ressalvar que estas proporções também não são iguais em todos os países europeus representados no gráfico: na Lituânia e Letónia a maior parte dos homicídios de mulheres são realizados por "outros". E Malta não teve nenhum homicídio em 2013, de homens ou mulheres! Seria interessante investigar as razões para estas diferenças, ou esmiuçar melhor os números (quais são as categorias dentro de "outros"? Os amigos, estão incluídos nos "outros"?) e ver como eles mudam controlando variáveis como a origem étnica, religião (será que há mais incidência de homicídios por familiares em comunidades muçulmanas, com os crimes de honra, por exemplo?), etc.

Há uns tempos o Louis CK tinha feito umas piadas sobre o risco que os homens representam estatisticamente para as mulheres em contextos de intimidade. E é engraçado porque vê-se que ele está a contar estas coisas num show de stand up comedy mas ele está meio sério e a tentar convencer a plateia de que não está a brincar, que é mesmo verdade, que uma mulher entrar numa relação é um risco para a sua integridade física, de uma maneira que não o é para um homem. E a plateia vai gargalhando, como se ele estivesse a dizer que isto dos namoricos é um risco para as mulheres porque os homens são totós e nunca se sabe o que nos calha na rifa, e ele continua a enfatizar, 'mas não, é mesmo um risco para as mulheres sair com um homem!'. 




Diverti-me quando vi isto agora novamente, com as estatísticas do Eurostat sobre as proporções de perpetradores de homicídios em mente, ao ver a distância da realidade estatística do risco a que estamos todos. 

(clicai para aumentar a banda)





S.